CRÔNICAS DAIMISTAS II
Sempre fui uma pessoa de fé. A conexão com o Divino é como o alimento que me aviva. Equilibra a mente, conforta o coração, nutre o corpo, faz-me Eu Sou.
Este Eu sagrado que me tornei por obra da mãe geradora universal, não cabia nos vários espaços do sagrado pelos quais passei.
Na igreja católica aprendi a rezar o terço; no espiritismo a compreender minha fé: fui médium, passista e palestrante. Nunca frequentei as casas evangélicas, mas o ritmo gospel me tocou profundamente, sempre.
No budismo Theravada, aprendi a meditar e com o guru Srisri Ravi Shankar, aprendi a sentir-me Divindade, em cada parte do meu corpo, em cada respiração.
E os Orixás… forças da natureza que me atravessaram - Eparrey mamãe, salve a Umbanda. Eu costumava dizer que uma única religião não dava conta de mim. - Sou minha própria seita.
Se em cada uma eu descobria algo que me completava, em todas elas havia sermões e preleções que em algum momento fugiam à minha perspectiva. Visões binárias, cisnormativas, maniqueístas... - Como alcançar a plenitude assim? E as inteirezas?
O Divino não cabia em palavras, não cabia em corpos. O Daime ecoava em mim como um causo, contado por buscadores que vi passar. Uma coisa a fazer antes de morrer, parte daquela lista que realizei: pisar nos três oceanos, saltar de paraquedas, conhecer a ilha do bananal, ir ao Louvre, aprender outro idioma, escrever um livro, doutorar-me.
Quando estava no pós-doutorado, resolvi fazer nova uma graduação, não tinha mais sentido estudar “sobre” a natureza, como bióloga. Que natureza era essa, distante, dissecada, morta em vidros de formol?
Eu precisava de uma nova graduação.
Depois do ENEM, caloura em Ciências Sociais, vi o monitor de Sociologia I postar a foto de um fardamento na Igreja Flor da Rainha, em Aracaju. Imediatamente escrevi para ele: - Preciso tomar Daime, pelo menos uma vez na vida. E ele me levou.
Na primeira vez só relaxei um pouco, na segunda desaguei a me limpar, mas na terceira… Meu Deus… meu ego se desligou e essas duas plantas abençoadas, hermafroditas, mostraram-me os segredos todos do universo. Um saber em forma de nuvens cor de rosa, algodão doce.
Era tanto amor, tanto amor. Eu não estudava mais sobre plantas. Elas que me ensinavam. Plantas professoras.
Quando me fardei nessa mesma igreja, o hino do padrinho Alfredo, cantado, dizia: -No ponto em que estou.
“Com meu Pai e minha Mãe
Toda estrela que dou
É uma graduação”
Desisti das Ciências Sociais. A graduação que eu merecia era outra. Não mais estudar sobre a natureza. A ordem era estudar-me natureza, com as aulas dela mesma.
Ali aprendi a cantar, como um trovão. Naquela igreja fui recebida como soldada da rainha, no batalhão feminino e nunca questionaram minha natureza trans-mulher, mesmo que a voz se manifestasse tão grave.
Uma vez, visitando o Canadá, a comandante do salão de uma pequena irmandade me disse que não saberia onde me situar, dentro da organização binária dos batalhões. Colocou-me então sentada em uma linha que ficava a meio caminho entre o batalhão das mulheres e o dos homens.
Durante o trabalho a irmã que estava na cadeira da ponta, da primeira fileira, teve que se ausentar do salão, por conta de um processo de cura. Então a comandante me colocou no lugar dela. Passado mais um pouco, uma das irmãs que estava na estrela também não passou muito bem. A comandante colocou-me, portanto, ali entre a madrinha e a puxadora. Naquele dia eu tive a certeza de que Juramidã reconhecia meu útero, meu nutrir, meu afeto, minha doçura, mesmo cantando com voz de trovão.
Na inteireza da alma somos todes Divindades. Não há lugar para separação. Não somos humanidade, não somos gênero, não somos identidade - apenas somos.
Hoje estou acolhida na irmandade da Igreja Mestre Irineu. Sou respeitada pelas irmãs e pelos irmãos, singulares aqui na terra, nuvens rosas aqui no céu.
No ritual do daime transfiguramos para nossa realidade plena.
“Esse Daime divino, que Deus deu pra tomar…
expande a consciência e faz transfigurar…
Para subir o monte é preciso trabalhar…
Tocar a mão Divina, para se melhorar….”
(Hino Transfiguração, mazurca - Alice Pagan - o primeiro canalizado por mim)
Parabéns Alice! Estamos juntos porque somos amor! 💕